
Após o Oscar de “Ainda Estou Aqui”, a obra que levou o cinema nacional à premiação inédita pode provocar uma reviravolta judicial sem precedente no ano do 40º aniversário da redemocratização do País. O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar no segundo semestre deste ano as ações que podem rever o alcance da anistia de 1979, concedida aos agentes públicos envolvidos no sequestro e desaparecimento de opositores durante a ditadura militar.
Os casos terão repercussão geral – ou seja, o decidido passará a ser replicado em todos os processos semelhantes em tramitação na Justiça –, e entre eles está o do engenheiro e parlamentar cassado Rubens Paiva. Além disso, na esteira do filme e de sua premiação, casos judiciais foram retirados das gavetas de ministros dos tribunais superiores e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu reformar as certidões de óbito de 404 desaparecidos políticos.
Antes da decisão do CNJ, 20 certidões haviam sido retificadas a mando da Justiça nacional e da Corte Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA). Os 404 novos documentos agora registrarão a causa como “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população brasileira como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Nessa nova fase, o primeiro desses documentos devia ter sido entregue à família Paiva, em janeiro. Mas ela não foi recebê-lo, seguindo orientação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). De acordo com Nilmário Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos, 82 atestados – incluindo o de Paiva – tiveram de ser refeitos por causa da ausência de informações, como local e data das mortes e o número de filhos da vítima.
“Esperamos por décadas uma certidão que falasse a verdade, e a grande maioria dos familiares quer tudo certo, mais do que um papel corrigido às pressas”, disse Vera Paiva, filha do ex-deputado. Para ela, houve uma “certa pressa”, cuja intenção até poderia ser boa, de se repetir a “famosa foto” de 1996, em que sua mãe, Eunice Paiva, recebe a primeira certidão de óbito de seu pai – cena retratada no filme. As certidões retificadas devem estar prontas em abril para entrega pelo ministério às famílias em solenidades ainda neste semestre. O plano é completar os demais documentos até o fim do ano.
Cronologia dos processos no STF e impacto de ‘Ainda Estou Aqui’

A Justiça se move
Desde o ano passado, a comoção nacional causada por “Ainda Estou Aqui” reacendeu a discussão sobre a responsabilização de agentes estatais pelos mortos e desaparecidos na ditadura e impulsionou processos que estavam parados há anos na Justiça. Quatro casos emblemáticos, que estavam sob a alçada do STF desde 2015, ganharam tração somente agora.
O caso mais conhecido é justamente o do ex-deputado federal Rubens Paiva, cujo sequestro e desaparecimento são o fio condutor da trama de “Ainda Estou Aqui”.

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A ação contra os militares reformados do Exército acusados de envolvimento na morte de Paiva tramita no STF – só dois dos cinco réus originais continuam vivos –, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, desde março de 2021. Mas, como mostrou o Estadão, ela só teve andamento em novembro do ano passado, dois meses após a aclamada estreia do filme de Walter Salles, no Festival de Veneza.
Ainda na esteira do impacto do filme, o caso Paiva foi reconhecido pelo STF como sendo de repercussão geral. Em outras palavras, os efeitos dos votos do ministro serão aplicados a todos os casos iguais e não ficarão restritos aos acusados desse processo: o general José Antônio Nogueira Belham e o major Jacy Ochsendorf e Souza.

Além deles, foram denunciados o tenente-coronel Rubens Paim Sampaio, o primeiro-tenente Jurandyr Ochsendorf e Souza e o coronel Raymundo Ronaldo Campos. Dentre os acusados que estão vivos, o major Jacy Ochsendorf recebe R$ 23,4 mil de salário bruto, sem descontos. Já Belham recebe R$ 35,9 mil brutos.

Há ainda as pensões pagas aos familiares dos réus Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos e Jurandyr Ochsendorf e Souza, que morreram após o início do processo. Considerando-se os dependentes deixados pelos três militares, há oito familiares aos quais o governo federal destina pensões. O custo total é de R$ 80 mil mensais. Somados, os valores relativos a salários e pensões dos réus pelo assassinato de Rubens Paiva chegam a R$ 140,2 mil.
Lei de Anistia
Para além do caso concreto de Paiva, que se debruça sobre a acusação de homicídio, ocultação de cadáver, fraude processual e formação de quadrilha dos cinco militares, a Suprema Corte vai decidir se a Lei da Anistia pode ser aplicada em situações consideradas como grave violação de direitos humanos. O processo sob a alçada de Alexandre de Moraes não é o único que se debruça sobre essa questão.
O ministro Flávio Dino é o relator de uma ação que trata da ocultação dos cadáveres dos integrantes da Guerrilha do Araguaia pelo major Sebastião Curió, com o apoio do tenente-coronel Lício Maciel. Assim como no caso Paiva, o STF reconheceu repercussão geral nesse processo, que também discute a aplicabilidade da Lei da Anistia aos casos de desaparecidos políticos sob o argumento de que a ocultação de cadáver é crime permanente, portanto, estaria sendo cometido até hoje, depois da anistia de 1979.
Diferentemente da ação que tramita no gabinete de Moraes, o caso relatado por Dino é mais recente no tribunal, tendo sido protocolado em junho de 2024. Ele teve tratamento mais célere. Em julho, foi recebido o parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) e, no mês de dezembro, o ministro emitiu um despacho a favor da repercussão geral do caso, que foi reconhecida pelos demais ministros em fevereiro deste ano.
Dino fez questão de mencionar o impacto do filme “Ainda Estou Aqui” e como a situação ocorrida com a família Paiva se conecta ao processo sob sua relatoria. O magistrado afirmou que a obra cinematográfica atualizou o debate sobre a Lei da Anistia.
“No momento presente, o filme ‘Ainda Estou Aqui’ (…) tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos”, escreveu Dino.
O começo de tudo
Antes de chegar às mãos do ministro Moraes e ser usado como exemplo pelo ministro Dino, o caso Rubens Paiva era uma das histórias insepultas da ditadura que de tempos em tempos rondava os tribunais. Ela começou no dia 20 de janeiro de 1971, no Rio. E ficou registrada nos tribunais, livros e jornais, além de documentos secretos da diplomacia americana antes de ir parar na dramaturgia.
No dia 2 de fevereiro de 1971, uma terça-feira, ela apareceu nas páginas do jornal The New York Times, que reproduziu um relato angustiante: “Não sei onde estão meus pais, e os quero de volta para mim e para meus irmãos”. A frase era da jovem Eliana Paiva, filha do ex-deputado federal.
O texto do repórter Joseph Novitski, correspondente do jornal em Brasília, dizia aos leitores americanos que 11 dias antes a jovem de 15 anos havia assistido ao seu “proeminente pai” ser levado encapuzado da casa da família, no Leblon, por agentes do regime militar. No dia seguinte – o repórter contava –, foi a vez de Eliana e sua mãe, Eunice Paiva, serem encapuzadas e também conduzidas pelos agentes.
Eliana foi solta no dia seguinte – a mãe ainda passaria mais alguns dias nas celas do Exército antes de ser libertada. Tudo relatado em uma carta escrita à mão por Eliana com uma letra “quadrada e feminina” e endereçada a deputados opositores.

Novitski alertava que as forças policiais brasileiras haviam “adotado táticas extremas” contra a oposição armada ao regime e relatava a sua estranheza pela ditadura, que censurava a imprensa, ter permitido a publicação do caso pelos jornais. Tratava-se, na verdade, da tentativa de criar uma farsa para justificar o assassinato de Paiva: dizer que o parlamentar cassado havia sido arrebatado das mãos de militares por supostos guerrilheiros.
A encenação da fuga de Paiva contou com um tiroteio forjado – mais de 40 anos depois, militares envolvidos confessaram a farsa em depoimentos ao Ministério Público Federal. O teatro montado pelos militares tinha um motivo: justificar o desaparecimento do parlamentar, morto sob tortura dentro do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 1º Exército (Rio).
O apelo de Eliana retratado no New York Times está anexado ao memorando do diplomata John Wallendahl Mowinckel para o então embaixador americano no Brasil, William Manning Rountree, aconselhando o chefe a cobrar do governo brasileiro a punição pública dos militares envolvidos no crime. “Este é outro exemplo de táticas de força irresponsáveis e trapalhadas das forças de segurança brasileiras. A diferença é que desta vez, quando os fatos se tornarem conhecidos, não será possível varrê-los para debaixo do tapete”, escreveu Mowinckel.
O destino de Paiva não era segredo para ninguém. Apenas os “mágicos” do Centro de Informações do Exército (CIE) acreditavam poder iludir a família, os amigos e o País. Mais de 50 anos depois, o enredo dessa história levou mais de 5 milhões de pessoas ao cinema para assistir “Ainda Estou Aqui”, primeira produção do cinema nacional premiada com o Oscar de Melhor Filme Internacional.
Shibata e Mário Alves: outros casos
A história da família Paiva pode ainda ter reflexo em outros dois processos no STF, que tratam de desaparecidos, assassinados, e do envolvimento de agentes públicos nesses crimes. As ações são relatadas por Moraes e, assim como no processo do deputado cassado, ficaram engavetadas por um longo período até serem retomadas recentemente, também na esteira do sucesso de “Ainda Estou Aqui” e do debate público suscitado pela obra.
Uma das ações mira o médico legista Harry Shibata, que é acusado de assinar laudos necroscópicos falsos de presos políticos assassinados pela ditadura com o objetivo de encobrir que as vítimas foram torturadas e vítimas de homicídio. A denúncia da qual é alvo cita que “omitiu informações com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.
O caso dele está no STF desde 2017, mas só em outubro de 2024, um mês após o lançamento de “Ainda Estou Aqui”, Moraes pediu que a PGR apresentasse parecer sobre o ocorrido. Em fevereiro deste ano, a Corte reconheceu que esse processo também tramitará em regime de repercussão geral.
Por fim, há o caso dos militares Valter Jacaranda, Luiz Mario Lima, Roberto Estrada e Dulene Garcez dos Reis, que são acusados de sequestrar, torturar e matar o jornalista Mário Alves de Souza Vieira em 17 de janeiro de 1970, também nas dependências do DOI do 1º Exército e, depois, ocultar os seus restos mortais.
Também relatado por Moraes, o caso foi autuado no STF em 2015, quando foi distribuído ao ministro Teori Zavascki. O caso foi redistribuído para Moraes em março de 2017 e só teve encaminhamento em outubro de 2024 com um pedido de parecer da PGR. Assim como as demais, a ação acabou com o status de repercussão geral reconhecida em fevereiro deste ano.
Do Estadão
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